domingo, 23 de maio de 2010

Banha da cobra computadorizada - Computed panacea



Quando eu era miúdo, a feira de São Martinho exercia sobre mim um enorme fascínio. Retenho na memória o ritual da fotografia de família tirada ao lado da floreira na barraca convertida em estúdio fotográfico, a magia das cornetas de barro donde colegas meus da escola primária arrancavam sons que eu nunca consegui imitar, a atracção das bolas de borracha que nunca tive para substituir aquelas que fazia com meias que pedia a minha Mãe, a papalvice daqueles que se deixavam ludibriar em jogos de cartas enganosos em cima de chapéus de chuva abertos... e, sobretudo, a espantosa verve dos vendedores de banha de cobra, a que não faltava a dita enrolada ao pescoço, que promoviam um líquido de cor duvidosa a remédio milagroso para qualquer doença.

Hoje, quase 50 anos depois, a banha de cobra vende-se nas grandes cidades sob uma forma diferente, mais sofisticada, metendo até computador! O panfleto, que encontrei na caixa de correio, reza assim:

Aos doentes que sofram de: tonturas; esquecimentos; sensação se movimentos no cérebro; zumbidos e outros sons nos ouvidos; moléstias esquisitas no céu-da-boca e garganta; problemas e dores nos peitos; insensibilidade, frigidez, impotência; ejaculação precoce; próstata; fibromioma; dores e outros problemas de ovários, trompas, vagina, etc.; impossibilidade de engravidar; tumores; esgotamento cerebral e stress; colite nervosa; queda do cabelo; inchaços dos pés e outros; mareios e desmaios; fraquezas gerais; depressão; tremuras; dores e outros problemas de coluna; operados que sentem as queixas voltar; tensão arterial baixa, alta ou inconstante; epilepsia; diabetes; insuficiência e outros problemas renais; prisão de pernas, braços, cãibras, ciática e outros problemas musculares; asma, bronquite, outros respiratórios; reumático e descalcificação dos ossos; celulite; inadaptação aos medicamentos; alergias, vitíligo e outros problemas de pele; picadas, dores, calores ou outras moléstias que dão sensação de movimento no interior do corpo; insónias, dormir inconstante; moleza e sonolência constante; prisão de ventre, úlcera e outros gastrointestinais; problemas de fígado, rins, vesícula e baço; alterações na cor da urina ou com sangue; sensação de ver ou ouvir coisas inexistentes; vertigens; bloqueios; moléstias da menopausa; enxaquecas; claustrofobia; medo a velocidade, pessoas, animais, altura, escuridão e outros; isolamento voluntário; lentidão exagerada nos actos; problemas circulatórios, colesterol; taquicardias e picadas no coração; gota e lumbago; sensação de muito frio ou muito calor nas mãos, pés e outros; problemas de crescimento, aprendizagem e conduta; Parkinson; angina de peito; aterosclerose; azias; bócio; cataratas; incontinências; enjoo; esquizofrenia; sinusite; hemorroidal; seborreia; sonambulismo; tosse nervosa e cancro; ... (uf!) ... o Instituto XPTO (chamemos-lhe assim) anuncia que tem o único dispositivo computadorizado disponível na Europa capaz de resolver estes casos de saúde, com base na detecção das insuficiências auro-bio-energéticas que impedem a cura das doenças pelos métodos convencionais. Só há um pequeno problema: os doentes têm de apressar-se a ir à consulta, porque está prevista para breve a saída do dispositivo para a América Latina para ajudar a debelar uma epidemia de cólera!

Ando com uma unha encravada e um calo assanhado. Como estes males não constam da lista, estou a pensar em ir este ano à feira da Golegã...


Eduardo Martinho

1992