sábado, 31 de julho de 2010

O Cartão de crédito - The credit card



De crédito, és Cartão
meu amigo, meu irmão...
Vazia, a carteira
mas tu, companheiro
dás dinheiro
a vida inteira
por isso, fica comigo
e eu contigo...
O povo diz
"Quem não tem Cartão
no bolso ou na mão
faz mal
é infeliz
é excluído social"...
Sem qualquer hesitação
mete pois o Cartão
marca o código secreto
e a carteira, antes vazia
por golpe de pura magia
já tem o papo repleto...
Altruístas, geniais
conheço mesmo Cartões
que conquistam corações
pois dão-te sempe o "pilim"
mesmo que não tenhas mais...
Sim...
venham, venham
não se detenham...
qual de vós é o primeiro
a gastar adiantado
um saboroso ordenado
ainda não trabalhado?
Abençoado Cartão
és nosso pai, nosso irmão
tudo me dás, quando peço
e só por vezes, confesso
me sinto
frágil, como um pinto
sózinho
longe do ninho
chupado até ao tutano
cérebro oco, tipo cano
mas, quando essa crise pressinto
a lucidez sempre finto
pois se o macaco quer bananas
a vaca, verdes canas
o porco, tenras bolotas
o comilão, boa mesa
o guloso, sobremesa...
eu quero o Cartão que dá notas!!!

Mizangala

domingo, 25 de julho de 2010

O Jornal de Barcarena - Newspaper of Barcarena



O Jornal de Barcarena
tem letra grande e pequena...
O Jornal de Barcarena
não tem direito de antena
pois conta histórias banais
feitas de coisas normais
(igrejas, escolas, quintais...)
O Jornal de Barcarena
vive no anonimato
ao sabor da brisa amena
e sem pedras no sapato...
O Jornal de Barcarena
tem noventa e dois leitores
e sem mártires na arena
canta a Terra e seus Amores...
O Jornal de Barcarena
tem letra grande e pequena
e eu sei, como contei
que ele é assim, mas não tem pena...

Mizangala

domingo, 18 de julho de 2010

A Borracha - The Eraser



Sisuda e fria
a Borracha, por magia
tudo apagava
e não se importava...
Os rabiscos no caderno
o fogo do Inferno
a memória ao computador
a combustão no motor
a luz da Lua
os candeeiros na rua
o fogão
a chama da paixão
o charuto, cachimbo ou cigarro
a pintura no jarro...
Porém, contente estou
pois por sorte escapou
para ele e para ti
esta história que escrevi...

Mizangala

domingo, 11 de julho de 2010

Barcos - Boats


Barcos são
instantes azuis
com sonhos presos
num carrocel.
Miragens
e reflexos
de vidro
madeira
e papel.

Teresa Martinho Marques

domingo, 4 de julho de 2010

A Bicha Nacional - National queue





1. Embora o dicionário do Rodrigo Fontinha tenha lá escarrapachado que uma bicha - no sentido de fila, entenda-se! - é «um grupo de pessoas em fileira, uma a uma ou duas a duas, etc.», é mentira. A bicha lusitana não responde a este apelo. Nas bichas da nossa terra, as pessoas nunca se colocam «uma a uma» ou «duas a duas», colocam-se sempre em «etc.». Por natureza, a bicha nacional é um magote, tudo ao molho e fé em Deus.

Ainda consultei o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa - por ser moderno, precisamente -, mas a definição também não está actualizada. Diz lá que bicha é um «grupo de pessoas dispostas em linha recta, lado a lado ou atrás umas das outras», mas não é. As pessoas, quando se dispõem em linha, nunca é em linha recta, é numa linha muitíssimo abstrusa. Talvez porque está por inventar a geometria do civismo em Portugal.

As pessoas nunca se põem atrás umas das outras, põem-se em cima umas das outras. Em vez de se colocar na bicha à espera da sua vez, cada um coloca-se na bicha à espera da vez dos outros. O pessoal põe-se onde calha ou onde acha que melhor pode iludir os seus competidores.

2. Quando o padeiro pergunta «Quem é que está a seguir?», há pelo menos dez bocas que se abrem, esfomeadas de vez, prontas para comer o vizinho que se atrever a responder primeiro. O homem, à cautela, ainda diz «Tenham calma, que há pão para toda a gente», mas ninguém se comove. Cheira a complicação na padaria do bairro.

Havendo peixeira na bicha, isso então é o fim do mundo: o caldo entorna-se em dois tempos, jorra molho de escabeche por tudo quanto é rival de ocasião. Ninguém escapa, na procura de um bode expiatório para o mal-estar que se instala. «A culpa disto tudo é do Governo!», ouve-se. O silêncio que se segue é de assentimento.

A confusão só acalma quando alguém mais bem composto, com o ar de quem está habituado a ser obedecido, diz serenamente: «Quem está primeiro é a senhora do casaco encarnado.» Num só movimento, todos os olhares convergem na dita cuja. Há uma breve hesitação. E, antes que alguém tenha tempo de pôr em dúvida o que quer que seja, uma voz fininha aproveita a pausa: «Quero um pão grande e doze papo-secos

O padeiro retoma o vaivém rotineiro, atendendo o pedido da senhora do casaco encarnado. A crise, essa, segue dentro de instantes. O melhor é dar uma volta e regressar mais tarde.

3. Quem diz padeiro, diz mercado, talho ou mercearia. Diz café de esquina à hora do almoço em pé ou bicha de autocarro em hora de ponta. Onde quer que seja necessário o pessoal ordenar-se, é certo e sabido que se estabelece o caos, a entropia aumenta. Só há civilidade na bicha quando não há ninguém à frente de ninguém. A bicha nacional é a imagem da falta de organização do País.

Acresce que a lusa gente gosta muito de bichas. Onde houver um amontoado informe de pessoas, está lá uma bicha portuguesa, com certeza. Nem que seja para verem melhor o acidente. Para poderem contá-lo em pormenor, enquanto se queixam das bichas.


Eduardo Martinho

Março.1997