quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Pastor - The Shepherd



Guardava o rebanho
o Pastor Tomé
e num coro estranho
as ovelhas em banzé
"Mé-mé-mé-mé!!"
Cantava o Pastor
no largo da Sé
e o rebanho com fervor
"Mé-mé-mé-mé!!"
Abre o saco da merenda
come o pão, bebe o café
e os ovinos sem emenda
"Mé-mé-mé-mé!!"
Toca a flauta o Pastorzinho
por gosto, por sina, por fé...
canta o gado com carinho
"Mé-mé-mé-mé!!"
Céu e sol por companhia
o Mundo todo ali ao pé...
no ovil, a sinfonia
"Mé-mé-mé-mé!!"
Regressando pelas nove
ou um pouco mais até
nada ou ninguém as demove
"Mé-mé-mé-mé!!"
Dormindo já, sob as telhas
eu vos digo, o caso é estranho...
ele é o Pastor das ovelhas
ou mais uma no rebanho?

Mizangala

domingo, 19 de dezembro de 2010

A Escada Azul em Caracol - Blue Spiral Stairway



A Escada Azul em Caracol
no palácio do Linhol
para quem entra
ou para quem sai
não mostra para onde vai...
Tudo concentra
e tudo dispersa
num sentido ou vice-versa...
No sobe e desce da Escada
ou vês tudo ou não vês nada
e nas suas entranhas...
coisas estranhas...
dragões comprando faíscas
zebras vendendo as riscas...
É assim que as coisas são
numa Escada em Caracol
não diz que sim nem que não
não mostra nem tapa o sol
não é ilha nem atol...
A Escada é igual mas diferente
rebelde, em tarde calma...
nunca se dá totalmente
nem mostra o fundo da alma...

Mizangala

sábado, 11 de dezembro de 2010

Árvore velha menina nova - Old tree young girl


Árvore velha
com mil estações.

Menina nova
um rebentinho
sem florações.

Árvore velha
livro antigo
com tanta história
para se ler.

Menina nova
folhinha branca
com tanto espaço
para escrever...

Teresa Martinho Marques

domingo, 5 de dezembro de 2010

É bom tê-lo aqui - It's nice to have him here



O Bruno está connosco há seis meses.

Ainda por nascer, anunciado cedo e com nome já escolhido, a família começou a amá-lo.

O Bruno está connosco há seis meses.

Em tempo de guerra, de fome, de xenofobia e de poluição. Nós, que queríamos dar-lhe o melhor, quedamo-nos impotentes perante a destruição furiosa, do Homem e da Natureza, que toma foros sem precedentes neste final de século.

O Bruno está connosco há seis meses.

Há dias, e como vai sendo tragicamente habitual, a televisão mostrou as cenas chocantes do último massacre em Sarajevo, numa Jugoslávia esquartejada por desentendimentos delirantes. Nada tem sido poupado por lá. E estão no nosso pensamento os aviltamentos recentes contra gente indefesa na China, em Timor, na Tailândia. Os ataques terroristas em Inglaterra, Espanha e Itália. A violência racista que cresce um pouco por todo o lado. A fome em África. A degradação da atmosfera, a morte dos rios, a destruição da floresta.

O Bruno está connosco há seis meses.

Crescendo com os outros meninos, num espaço comum, que é a sua herança e a nossa vergonha. Nós, que queríamos o melhor para eles, assistimos a estas catástrofes de braços caídos, com os olhos tristes e húmidos de espanto. Até quando?

O Bruno está connosco há seis meses.

Num tempo de contradições. Apesar de tudo, é bom tê-lo aqui. Só que é imperioso e urgente dar a volta a indiferença!


Maria da Piedade Pinheiro

Maio.1992

sábado, 27 de novembro de 2010

Sim, Senhor Doutor ! Sim, Senhor Engenheiro ! - Yes, Doctor ! Yes, Engineer !



Há dias tive a oportunidade de ver um certificado de passagem de ano lectivo de uma aluna que frequenta uma Universidade belga, concretamente a Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Refira-se desde já que, contrariamente ao que se passa na Universidade portuguesa, a aluna não tinha tido necessidade de requerer o certificado, e os respectivos serviços administrativos não haviam levado tempos infindos a passá-lo. De facto, quando acaba o ano lectivo, e com as classificações lançadas em computador, os professores da ULB reúnem-se em sessão pública e, logo ali, distribuem o certificado pelos alunos que concluíram com êxito os seus exames.

Na posse desse documento, os alunos podem então inscrever-se no ano lectivo seguinte, candidatar-se a um quarto numa residência universitária, solicitar uma bolsa de estudo nos serviços sociais da Universidade, etc. Como se percebe, o sistema está concebido para funcionar com operacionalidade e sem burocracias exageradas, e funciona mesmo.

Vários aspectos impressionam nesse certificado, desde a sua simplicidade formal até ao volume de informação nele contido (que inclui a carga horária anual de cada disciplina e o nome dos respectivos professores), passando pela já referida eficácia com que o documento foi produzido, logo no final do ano lectivo, por recurso a uma tecnologia moderna de processamentos dos dados escolares.

No tocante à simplicidade formal, um aspecto saliente, a reter aqui, tem a ver com a forma como o nome dos professores é escrito no certificado: Mr. Salmon, Mr. Louis, Mr. David, etc. Ora, Mr. é a abreviatura de Monsieur, que quer dizer Senhor, cuja abreviatura é Sr.. Por outras palavras, professores conhecidos internacionalmente, pertencentes a uma Universidade prestigiada, são mencionados muito simplesmente como Sr. Salmon, Sr. Louis, Sr. David, ... Aliás, esta é a regra geral de tratamento das pessoas entre si na Europa, independentemente dos seus graus universitários: o Senhor X, o Senhor Y, ... É simples e prático, e ninguém se sente ofendido ou menos importante.

E que se passa em Portugal? No nosso País, terra de muitos convencimentos e equívocos, onde o reconhecimento de valores nem sempre obedece a critérios de rigor, há muitos e variados tipos de tratamento: Senhor Doutor, Senhor Engenheiro, Senhor Professor... sem falar nas variações utilizadas na forma escrita: Senhor Professor Doutor, Senhor Doutor Engenheiro, Senhor Professor Doutor Engenheiro...

Poderia pensar-se que, com o evoluir do nosso sistema político para uma democracia de tipo europeu ocidental, pudesse haver alguma iniciativa consistente para tentar modificar a situação no tocante à forma de tratamento entre os portugueses, retirando-lhe o convencionalismo reinante e a carga de subserviência que lhe pode estar (e está, muitas vezes) associada. Esta democratização do relacionamento entre os cidadãos poderia (deveria) ser encetada calmamente ¾ que o hábito vem de longe e está enraizado ¾ e sem demagogias, como um projecto a prazo, sem prejuízo do reconhecimento de que as pessoas são diferentes entre si, como distintas são as funções que desempenham na sociedade. No fundo, o respeito saudável por alguém é uma atitude natural, decorre daquilo que a pessoa realmente é e não dos títulos académicos, ou outros, que possa ostentar.

Poderia pensar-se que sim (com o evoluir do sistema político, dizia), mas não, nunca foram dados passos nesse sentido. Sê-lo-ão algum dia? É que mesmo pessoas esclarecidas e tidas como progressistas continuam agarradas a velhos hábitos e “privilégios”, que cavam a diferença e acentuam as distâncias, e defendem-nos ciosamente, forçando a hierarquização dos portugueses em cidadãos de primeira e cidadãos de segunda (onde se incluem cerca de dois milhões de analfabetos!), como se não fosse já suficiente a diferença real existente na prática.

É o caso do professor universitário que humilha um empregado da Faculdade apenas porque o tratou por “Senhor Doutor”: ¾ Senhor Doutor? Senhor Professor, quer dizer! Olhe que se for preciso puxar pelos galões, posso muito bem fazê-lo!

É o caso do médico que invectiva a funcionária dos correios apenas por lhe ter enviado um aviso dos CTT sem o Dr. atrás do nome.

E muitos outros exemplos poderiam ser mencionados.

Nesta matéria, como em muitas outras, Portugal está longe da Europa. E se é verdade que para conseguir certas evoluções são necessários fundos avultados, neste caso a mudança depende apenas de nós, assim haja coragem para encetar um caminho de igualização da dignidade. Agora que foi criado pelo Conselho de Ministros uma estrutura designada “Secretariado Europa 1992”, que «visa, no essencial, mobilizar o País para o desafio decisivo que é a construção da Europa sem fronteiras até 1992», talvez fosse uma boa oportunidade para eliminar certas fronteiras entre os portugueses!

Eduardo Martinho

Setembro, 1988

domingo, 21 de novembro de 2010

O Homem Primitivo - The Primitive Man



O Homem Primitivo
era sobretudo
do tipo peludo
mas tinha um motivo...
O frio era tanto
que o pêlo fazia de manto
e as barbas, longas e fortes
permitiam às crianças
agarrar-se nas mudanças
ajudando nos transportes
e às mulheres primitivas
do marido possessivas
atá-las a um menir
para os não deixar fugir...
Sobre os Homens Primitivos
com todos os seus motivos
firme é a certeza
de que são seiva da Mãe Natureza...
brutos, mas não corruptos...
feios
sufocados por receios
mas não dementes
ou poluentes...
guerreiros genuínos
e não assassinos...
Como eles, quero chorar ou rir
hesitar e avançar
perguntar, experimentar
inventar e descobrir...
Por isso, pretendo evoluir
tendo justo motivo
para querer e tentar ser
um bom Homem Primitivo...

Mizangala

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Comprimido - The Pill



Percebeu o Comprimido
que o futuro
seria duro
fortemente comprometido
e o mais certo era acabar
por uma boca engolido
em trago de água enrolado
nas entranhas derretido
trucidado e amassado
para um enfermo curar...
Claro está, o Comprimido
que não tinha por vontade
um destino tão sofrido
transpirando ansiedade
correu da caixa para fora
sem sequer olhar para trás
deu à sola, foi embora
e sabe bem o que faz...
Fui há dias encontrá-lo
escondido na crista do galo
(que é de barro e de Barcelos)
esperando por dias mais belos
moral em baixa
mas redobrando a vontade
que passe na sua caixa
o prazo de validade...

Mizangala

domingo, 7 de novembro de 2010

O Touro e o Forcado - The Bull and the Forcado



Praça cheia
na tourada
e a plateia
colorida,variada
tão feliz e animada...
O Forcado olha para o Touro
e o Touro, para o Forcado
o primeiro, veio por querer
quanto ao Touro, foi forçado
mas vai marrar a valer
se a isso for obrigado...
"Eh Touro!!" - grita o Forcado
berra o Touro: "Está calado!!"
pasma o Forcado: "Tu falas?!"
volve o Touro, com vigor
"Mas porque é que não te calas?
Ainda para mais está calor..."
"Estou aqui p'ra te pegar!!"
diz o Forcado zangado...
"Com isso não ganhas nada
e ainda levas uma cornada!!"
Conclui o Touro sorrindo
(toda a vaca o acha lindo...)
O que depois se passou
não é normal, nem vulgar...
a festa taurina acabou
com Touro e Forcado no bar
e, sem medo que o povo veja
foram beber uma cerveja!!!

Mizangala


domingo, 31 de outubro de 2010

Às avessas - Inside out


Beijei um príncipe
transformou-se num sapo.
Beijei o sapo
nadou um girino.
Dei-lhe um beijinho
ficou pequenino
e voltou a viver
dentro do ovinho.

Teresa Martinho Marques

domingo, 24 de outubro de 2010

O Extraterrestre - The Extraterrestrial



Cantava o rouxinol-mestre
quando a nave extraterrestre
surgiu do nada
e, bem iluminada
aterrou de mansinho
por entre fumos cor de linho...
Abre a porta de serviço
e sai um ente esverdeado
com a forma de chouriço
de crânio liso insuflado
salpicado por antenas
que não devem ser apenas
ornamento tresloucado
apêndice ou camafeu
mas talvez, suponho eu
meio de telepatia
televisão, radiofonia
ou, se não me levam a mal
no seu longínquo planeta
um chamariz sexual...
Grandes olhos, íris preta
inspirou profundamente
doce golfada de ar quente
perfumado e tão diferente
do que tem na sua origem
na constelação de Virgem...
Com os dois dedos da mão
afaga, brinca com as flores
deita-se, rola no chão
sente a erva e o sossego
sente o verde e as outras cores
onde pastava um borrego
branco, fofo, imaculado
que olha para ele, admirado...
Voa o tempo e nasce o dia
batem-lhe os raios de sol
na careca luzidia
sinfonia em lá bemol
que o confunde, que o encanta
e a solidão espanta
(sofrendo só em pensar
que ao Espaço tem que voltar)...
Contorceu então a boca
fazendo careta louca
e desse esgar, se fez sorriso...
entendeu o que é preciso...
O Cosmos, frio e distante
deixou de ser importante
decidiu... vai desertar
da Frota Inter-Estelar...
O Extraterrestre
agora, no espaço campestre
de cérebro superdotado
está feliz, modificado
saiu da sua redoma
e disse em bom português
(pois fala qualquer idioma)
certinho, de uma só vez
com sotaque, claro está:
"Não volto, fico por cá!!!"

Mizangala

domingo, 17 de outubro de 2010

O sabor... - The taste...


O sabor das palavras
chega
devagarinho...
Sabe a ave?
Sabe a ninho?
Sabe a letras
algarismos
(o um, o dois, o três...)?
Sabe a era uma vez?

O sabor das palavras
sabe ao que o sonho sabe?
Sabe a Alice ou a fada?
Terá o sabor de tudo
sem se parecer com nada?

O sabor das palavras
sabe a saborear
os sabores que elas têm
quando resolvem brincar
espalhar contos pelo ar
ou se deixar escrever?

Sabe o sabor das palavras
ao perfume de crescer?
Ao gostinho saboroso
que tem as palavras ler?

Ou tem o sabor de segredo
que vai deixar de o ser?

Teresa Martinho Marques

domingo, 10 de outubro de 2010

As lições doJoaquim ou a importância dos pequenos nadas - Joaquim's lessons or the importance of little details



O Joaquim era o meu companheiro preferido de brincadeira, em tempo de férias da escola primária. Com ele calcorreava a quinta onde moravam os meus avós paternos, no Pinheiro Grande, que foi palco das mais excitantes descobertas e aventuras da minha meninice. A propriedade era pertença do senhor David Salgado, conhecido farmacêutico na Golegã, que ali vinha passar fins-de-semana e períodos de férias com a família.

Com o Joaquim aprendi a armar ratoeiras, a fazer fisgas com elásticos e couro flexível montados num pedaço de ramo em Y, e a construir armadilhas, com bocados de cana presos com guita, para caçar melros e tordos vivos, sendo o engodo as lagartas que ele desencantava com perícia nos caules do milho.

No tanque que ficava no cimo da encosta, já a caminho da charneca, observávamos deliciados o verde mesclado e brilhante das rãs e, coisa espantosa, impressionavam-nos os insectos que deslizavam à superfície da água, por impulsos descontínuos, apoiados nas patas, cujas extremidades pareciam ter almofadas flutuadoras. Era aí também que púnhamos a navegar os pequenos barcos construídos com casca de pinheiro, que se deixava facilmente moldar com o canivete ¾ recordo-me que, na fase dos acabamentos, esfregávamos as partes a bolear nas paredes de cimento do tanque, que era a lixa que tínhamos à mão.

À hora da merenda, subíamos a uma nespereira enorme, inclinada sobre uma courela, que ficava próximo do canavial onde pernoitavam bandos infindos de pardais barulhentos. Ou, então, descíamos à várzea, para saborear as ameixas mais perfumadas que já conheci. Outras vezes, respondia ao chamamento vindo de baixo, gritado da eira onde guinchava a máquina de descarolar o milho e se ouvia o bater compassado dos manguais, entremeado com a vozearia dos homens atarefados na debulha do feijão. Pão com queijo e uma pinga de café adoçado com mel de cortiços caseiros, era o tipo de mimos com que a avó Engrácia me apaparicava.

Guerras também as fazíamos, naquele tempo. O Joaquim era um especialista no fabrico de armas de arremesso. Uma delas era feita com um tronco direito de sabugueiro, a que se retirava o miolo, onde trabalhava um êmbolo feito à medida, em pau de marmeleiro: os projécteis eram pequenas rolhas de cortiça colocadas nas extremidades do tronco, que saíam com estrondo sob a pressão do ar. Numa outra arma, mais sofisticada, que até tinha gatilho, o Joaquim utilizava como espingarda um bocado de cana grossa com cavidades judiciosamente abertas, onde encaixava um ramo de marmeleiro dobrado: aqui, as balas eram pequenos canudos de cana fina colocados no interior do cano, encostados ao gatilho; desprendido este, lá voava o projéctil em direcção aos soldados alinhados nas trincheiras, feitos igualmente com canas.

Foi em casa do Joaquim que vi, pela primeira vez, fascinado, uma cultura de bichos-da-seda. E aí fui iniciado na lógica do raciocínio dedutivo. Face à conversa dele, peguei num casulo e afirmei, convencido: “Mas isto não pesa nada!”. O Joaquim olhou-me calmamente e corrigiu: “Repara que nada mais nada é igual a nada, e eu tenciono vender os casulos ao quilo...” Inesperadamente, eu acabara de tomar consciência da importância dos pequenos nadas. E mais: que era preciso atender às leis de conservação universais que regem as ciências experimentais, como a Física ¾ mas isso só o compreendi, verdadeiramente, muitos anos depois.

Interrogo-me hoje até que ponto me terão influenciado as brincadeiras com o notável Joaquim, que comigo partilhou fraternalmente a sabedoria adquirida com inteligência no contacto com a Natureza. Quem pode prever o destino das sementes caídas no terreno da infância?

Eduardo Martinho

Março, 1995